Quando pequena, acho que tinha uns
sete a oito anos de idade, não sei bem, mas isso não importa, morava em um
pequeno prédio que ficava de canto de duas ruas que hoje são bem movimentadas,
mas naquele tempo não. Neste pequeno prédio morávamos no andar de cima e no
andar de baixo era o comércio do meu pai. Era um comércio bem movimentado e
sortido, meu pai vendia do jabá ao brinquedo. Eu cresci neste ambiente de
compras e vendas, eu era a filha mais nova de uma prole de quatro, éramos três
mulheres e um homem. Eu como caçula tinha alguns privilégios.
Meu pai era um homem simples e
trabalhador, minha mãe era uma pessoa também simples e uma excelente mãe e dona
de casa. Era uma pessoa que gostava muito de animais, cresci rodeada deles. Minha
mãe criava porcos, galinhas, papagaios, periquitos, gatos, cachorros. Aprendi
muito cedo a dar valor à vida não só humana mais também dos animais. Quando não
estava brincando eu estava estudando ou outras vezes eu estava no comércio do
meu pai, hora ajudando a arrumar as prateleiras (coisa que eu gostava muito,
foi praticando esse trabalho que aprendi arrumar tudo em ordem crescente,
rótulos sempre pra frente, produtos agrupados por qualidades e necessidades de
primeira ordem. Até hoje arrumo meus armários assim, minha filha diz que é TOC,
aprendi com meu pai que é organização com satisfação e necessidade) hora
buscando algum doce ou um brinquedo para brincar. Apesar de ser menina eu
adorava brincadeiras de meninos e em especial as bolinhas de gude, pipas e jogar bola.
Tive muitos amigos, todos
maravilhosos. Sempre gostei mais de brincar com meninos do que com meninas. Mas
também brinquei muito de boneca, mais os meus preferidos eram bolinhas de gude,
pipas e jogo de botão. Mas às vezes que não dava para eu sair porque estava
chovendo, o que eu mais gostava mesmo de fazer era sentar-me em cima de uma
mesa grande que minha mãe tinha. Eu cresci vendo aquela mesa, mamãe compara a
mesma de um Senhor chamado José, ele era barbeiro, e estava com vontade de
tentar a vida em outro lugar e por isso decidiu vender suas mobílias e minha
mãe interessou-se pela mesa. Quando minha mãe soube que ele estava vendendo-a,
não perdeu tempo, ela se encantou com a mesa, pela sua forma retangular,
tamanho, altura, e também porque tinha uma grande gaveta. Minha mãe era uma
pessoa decidida organizada e tinha visão além. Na mesa, minha mãe talhava todas as
roupas da família e principalmente as calças de meu pai. Também fazíamos todas
as refeições, quase todas as noites depois do jantar, papai sempre ficava
conversando com mamãe, como eu era a menor ficava por perto, ficava cansada de
esperar eles decidirem irem para o quarto dormir.
Eu dormia no mesmo quarto, e tinha
medo de ir para lá sozinha, no fim das contas eu acabava deitando-me embaixo da
mesa. Às vezes meu pai contava histórias sobre, fantasmas, curupiras, uma
trouxa de roupa que diziam que rolava de madrugada rua abaixo (a rua comentada
era a Manicoré, onde nasci e morei até aos seis anos) e outras lendas urbanas
da época. Aquilo me dava medo e eu tratava logo de dormir. A parte boa era que
sempre meu pai carregava-me no colo para o quarto colocando-me na minha rede. É
uma saudade boa de ser lembrada.
Tenho lembranças ainda muito mais
remotas, de quando eu era ainda muito menor talvez dois, três, quatro anos,
todas às vezes que mamãe dava-me banho ela colocava-me em cima da mesa para
enxugar-me e passar talco. É, é isso, eu tinha três anos quando esta mesa
entrou em nossa casa e em minha vida também. Como eu estava dizendo, quando
chovia e eu não podia sair para brincar, então eu me sentava em cima da mesa
que ficava sempre perto de um janelão na sala de jantar. Ficava lá, olhando a
chuva e o horizonte na direção onde o sol nasce essa direção era muito arborizado
e as copas das árvores pareciam que se se encostavam ao céu e eu ficava a
imaginar o que havia por detrás daquelas árvores.
Permanecia lá, sonhando e vendo a chuva
cair, perto do janelão onde passavam os fios de luz. Eram quatro carreiras de
fios de luz, ficava tão próximo do janelão que se esticasse o braço com um cabo
de vassoura poderia tocá-los, (bom, só os adultos, pois meus braços eram
pequenos). Eu gostava daqueles momentos, era maravilhosos eu via nitidamente as
gotículas de chuva cair em direção a grande calçada que circulava o prédio. E
quando a chuva ia passando, era o melhor momento, pois todas as gotinhas da
chuva que ficavam nos fios, elas começavam uma linda dança, que eu chamei de A dança
das gotas d’água.
As pequenas gotas corriam por certa
distância no fio e quando paravam acabavam caindo para o fio de baixo, para se
agruparem com outra gota e depois todas saiam juntas a fazer novamente a dança
de correm pelo fio até caírem novamente e irem pararem no fio debaixo e assim
por diante, até que quando não tinha mais fio elas caiam definitivamente na
calçada e lá escorriam para a grama.
Eu ficava assim, observando todos os
movimentos delas, às vezes até não ter mais nenhuma gota nos fios. Ficava a
contar as gotas mágicas. Depois aprendi a marcar o tempo de uma gota para
outra, até caírem. Hoje, às vezes quando passo perto desse prédio e olho para
cima e não vejo mais o janelão, pois o prédio foi transformado em uma grande
loja de motos e o novo dono achou por bem mudar a fachada do prédio cobrindo
toda a frente e lateral e por isso ficou tudo por trás escondido, no passado de
um tempo que passou. Assim também acho que ficaram escondidas dentro de mim as lembranças
daqueles dias em que eu sentava em cima da mesa e ficava a olhar a chuva cair e
depois ver A dança das gotas d’água, e o horizonte, imaginando o que teria através
daquelas grandes copas.
Hoje, eu sei o que tinha escondido
atrás daquelas copas. Era o meu futuro. Atualmente estou casada e moro
justamente neste horizonte, na direção em que eu olhava agora eu olho daqui e
não consigo ver o prédio, pois as árvores que de lá eu via, não existe mais
aqui. As árvores foram substituídas por casas altas e até prédios. Hoje são
eles que escondem o meu horizonte de lá e não consigo mais sonhar ou ficar
pensando no que teria atrás daquelas construções, pois eu sei o que o progresso
fez. Também não tenho mais muito tempo
para olhar a chuva, só me resta às lembranças, a mesa da parte da herança de
minha mãe e uma menininha que sempre sente saudade de ver A dança das gotas d’água,
sentada na mesa debruçada no janelão, vendo pequenas gotas d’água.
Texto e foto de - Francisca Uchôa Souza
O janelão que me referi no texto é o terceiro do fim pra frente do prédio. Tempo bom. O comércio de meu pai chamava-se Planice Verde.
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