Ali nasceu Jesus
O barulho de todos os sons e as vozes das pessoas que
acabavam se tornando em murmúrios, já não incomodavam João. Ele já se
acostumara a viver naquele ambiente movimentado por tanta gente de diversos
lugares e de todos os valores. Era um solitário, em meio à multidão. Seu
cantinho era um beco sem saída, só não era esquecido porque todos do comércio
local ali jogavam seus lixos, que geralmente eram caixas e plásticos. João
aproveitava quase tudo, as caixas ele usava para forrar o chão e fazer pequenas
paredes e o plástico ele cobria essa casa que ele tanto cuidava e trocava sempre.
João já vivia ali há muitos natais e ele sabia que aquele seria mais um, só que
agora não estava mais tão sozinho, agora ele tinha Fiel, seu pequeno e
escudeiro amigo. Fiel era um pequeno cachorro que em uma madrugada meio chuvosa
o encontrou perambulando perto do beco. João não o quis pegar para ele, mas
Fiel adotou João como seu novo dono. E João não resistiu aquele olhar meio
apagado. Fiel era cego de um olho, vai ver foi por isso que fora abandonado.
João sabia o que era ser um peso na vida de alguém, ele mesmo se sentiu assim
quando um dia descobriu e ouviu o que os filhos pensavam dele. João sabia que
todos tinham seus problemas e ocupações e ele agora se tornara em mais um, ele se
lembra das palavras de um dos filhos; -“Ele está velho e daqui a pouco ficará
caduco e fora outros problemas que irão aparecer e sabemos muito bem que isso
irá agravar muito mais, o certo é colocá-lo em uma casa de repouso, lá ele terá 'pessoas qualificadas' para dele cuidar”.
João lembra quando casou, não tinha qualificações para cuidar
de bebes, tinha que trabalhar, mas quando chegava à noite em casa ele ajudava
sua esposa a cuidar do bebe mesmo sem qualificações, os dois aprenderam, pois
tinham amor e isso é uma qualificação que ensina todas as outras.
Depois que perdera sua esposa, João continuou a viver com que
lhe sobrara, os filhos aos poucos foram indo embora e quando viu, estava só. A
solidão era ruim, mas estava começando aprender a viver com ela. Os filhos por
necessidades resolveram que tinham que vender a casa para sanarem dividas, que
ele não as tinha feito. Não houve muito diálogos, João sumiu, saiu de cena,
desapareceu, com que tinha no bolso, comprou uma passagem de ônibus e foi para
outra cidade, mudou.
Triste, muito triste. Os primeiros dias foram cruéis,
terríveis, quase ele desiste e voltava, mas seu amor estava machucado, dolorido
mesmo, e ele sabia que eles, seus sete filhos, nenhum iriam entender e talvez
fosse até pior, nunca veriam em seus olhos o clamor do amor que ele tanto
queria e precisava.
Às vezes João sentia-se culpado e perguntava-se: Onde errei?
Seria porque vivi mais para o trabalho do que para brincar com eles? Quem
pagaria as contas?
Ou seria porque nas férias todos eles viajavam e João ficava
para reforçar no escritório e com isso ganhava uns extras para pagar os pacotes
de viagens tão desejados?
João não sabia direito, acabava deixando de lado os questionamentos,
pois tinha que viver um dia de cada vez, vendendo papelões e plásticos para o
seu sustento e o de Fiel.
O tempo passou e João ficou. Ficou só, a tristeza doía e ainda
tinha os perigos das ruas, ele até tentou um abrigo, mas não deu certo e assim foi
ficando. João começou a observar que além dele tinha tantos outros amargurados
e com eles aprendeu a sobrevivência das ruas. Matar um leão por dia. Era a
meta.
Muitos poderiam questionar sobre a vida de João, já que ele
tinha família porque estar nas ruas?
Mas ele não mais se importava com a opinião dos outros e a
família, essa ele sabia que o esquecera de vez.
Agora era natal de novo e ele precisava resolver sobre a ceia
dele e de Fiel.O rapaz que comprava sua mercadoria desaparecera, depois João
ficou sabendo que ele havia sido atropelado e levado para um hospital, agora
ele tinha que procurar outro comprador. Mas não achou. E as coisas estavam
esquisitas, pois seus papelões e plásticos diminuíram bastante. João ficou
sabendo que era a “crise” e assim, seu natal talvez também estivesse em “crise.”
O que fazer?
O dia estava findando e com ele ia à esperança de João,
estava cansado, com fome e agora era aquela dor de cabeça e um frio vindo não
sabia de onde, pois o tempo estava quente. Fiel também sentia fome, mas não
reclamava, não soltava um au. As poucas caixas e plásticos que apareceram João
ainda conseguiu ajuntar em um canto, conseguira água para ele e Fiel e assim
depois de uns goles ele deitou e esperou a noite chegar. João tinha um
privilégio nessa tormenta de vida, o beco que vivia ficava na frente de um
prédio com janelas todas de vidros e todos os fins de dia ele podia ver o por
do sol no reflexo do prédio. Mas nesse dia, não foi possível, João dormira
cedo.
Os latidos eram altos e fortes para um cachorro de pequeno
porte. Mas Fiel latia como nunca e não saía de perto de João. João acordou
atordoado sem saber o que estava acontecendo, abriu os olhos e viu vultos, não
conseguia distinguir de imediato. Aos pouco foi se erguendo do chão e vendo que
o beco estava tomando por algumas pessoas. João se ergueu, mas caiu e logo ele
sentiu uma mão lhe levantando novamente. João ficou confuso e nervoso, Fiel já
parara de latir e estava sendo acariciado por uma criança. Afinal o que era
aquilo? O que estava acontecendo? Quem eram aquelas pessoas? O que queriam?
Eram tantas perguntas.
João não precisou perguntar mais, agora já com a vista
estabilizada percebeu que eram pessoas vestidas de Papai Noel e que traziam em
suas bolsas, presentes e alimentos. João foi abraçado e felicitado com um “Feliz
Natal” e encaminhado para outra pessoa que lhe entregou sorrindo um prato de
comida e uma bolsa contendo roupas, agasalhos e calçado. João até por uns instantes
esqueceu Fiel, mas logo o recebeu com uma pequena coleira verde, já em seu pescoço,
escrito Boas Festas.
Era um encanto? Estava sonhando? Não! Logo seu colega de rua
veio ao seu encontro e disse: “São os Voluntários da Paz, eles fazem esse
trabalho todos os anos e hoje ele chegaram até nós”.
João sorriu e se perguntou: (Seriam eles qualificados?)
O certo é que ali naquele momento, nasceu Jesus.
Jesus foi um como eles. Tinha amor, amor com qualificações de
amor, a que ensina todas as outras.
Feliz Natal!
Texto e foto de Francisca Uchôa Souza.
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