No subsolo da escuridão
Assusta-me o fato de saber que mesmo na penumbra de meu quarto te vejo
rondando-me. Fazes parte dos meus fantasmas. Às vezes vens sorrateiramente e
tentas inibir meus sentimentos. Fico atenta, sei muito bem do que és capaz.
Enganas com sorrisos, voz macia, olhares confortante, estendes as mãos,
ofereces ajuda... Tudo mentira e mentiras, falsidade, perigo...
Fazes hoje parte de um mundo que não me interessa, aliás, nunca me
interessou, alimentas uma parte deste mundo com horror.
Mesmo assim, você um dia fez parte de mim, o melhor de mim, mas não
adiantou. Procurei te amar como és, todos falavam e falam mal de ti, eu te defendia, dava
razões, protegi, alimentei, dei forças, sofri...
Na calada da noite, no silêncio do descanso, tu vens, chegas de mansinho,
calmo, ficas me olhando, vigilante. Sem querer te ver, sinto teu olhar pesado,
desafiador, arrogante, cobrando.
Fico com medo, embaraça-me, fico tonta, aflita, respiro fundo e parto
para o desafio, luto contigo, muitas vezes venço, consigo fugir, outras me
entrego e em teus braços vivo o amor, a paixão o medo, o horror. Tudo começa novamente
até quando desisto novamente de ti.
Algumas vezes sou pega de surpresa, durante o dia, entre o caminho de casa e o trabalho, pego o ônibus lotado, uma luta, um esfrega, esfrega,
suor, uma batalha... No meio do caminho consigo sentar, ao meu lado um jovem
garoto de cabelo colorido e molhado tentando se segurar em uma barra de ferro, mexe
em seu celular, procurando talvez uma música para ouvir e passar o tempo até o
seu destino. Mas o que dele sai é uma canção que fala de amor e traição, fecho
os olhos e vejo você. Pronto! Tudo perdido, em um passo de mágica você se instala
em mim. Não consigo mais fugir, você sorrir, um sorriso doce e amargo, sabes que
podes vasculhar minhas entranhas sentimentais e me possuir. Depositas o que
seria de bom se fosse verdadeiro, mas não é. É poder, prisão, possessão.
Continuo com os olhos fechados, tento concentra-me em uma oração, uma
oração que me salve, me liberte desta escravidão. Oro. Deus! Socorro!
Dá certo, não escuto mais a canção, abro os olhos e lá não mais estais. O ônibus para e neste ponto o garoto desce com seu instrumento de horror e
tentação.
Relaxo o corpo no assento fecho novamente os olhos e sinto uma pequena
brisa de vento passando pelo meu rosto, ouço o barulho das pessoas, vozes,
buzinas, o barulho da cidade, da vida, da minha vida, que vivo, sem você, sem medo.
Na realidade é uma vida que eu não queria, mas é a que posso ter, sem
você. O ônibus continua sua rota, para, descem pessoas, sobem pessoas. Pessoas
como eu, mas será que alguma delas tem um algoz como você?
Já algum tempo venho pensando; e se eu arranjar um lugar pra colocar você
e trancar? É, isso mesmo, trancar você e viver em paz. Teria que ser um lugar
onde eu poderia observar e controlar para de lá você não escapar.Claro que não quero me transformar em um algoz como você, mas será necessário ter
este controle e poder viver sem medo, sem sobressaltos, em paz.
Meu ponto chegou, desço do ônibus, olho para os prédios e os vejo
coloridos, todos são realmente coloridos, suas fachadas, portas e janelas
brilham na luz do sol. Prédios, edifícios, com lojas, apartamentos, pessoas,
vidas, vivendo no concreto, mas vivendo. Então penso: " E se eu arranjar uma sala
no sobsolo de um desses prédios e lá encarcerar você?" Seria bom!
Assim passaria o dia todo perto de ti, vigiando, mas sem te ver e sentir medo,
pavor de ti. Quando o dia terminasse voltaria para casa e tu ficarias aí,
escondido, trancado, preso, abandonado, na escuridão. Um local com uma porta de
madeira bem pesada, trancada a sete chaves.
Perdoe-me, mas preciso fazer assim, mas tu sabes que assim eu não sou,
obrigas-me.
Tua prisão será colorida, só a porta, e por fora, só eu verei assim, como
os prédios a minha frente, cheios de luz e vida. Lá não. Na tua cela deverás
ficar só, sem mim, na escuridão.
Escrito e postado por Francisca Uchôa Souza - Desenho de Francisca Uchôa Souza
M- Escuridão -
