terça-feira, 9 de setembro de 2014

A janela e o rio

A janela e o rio
A janela que faz parte da casa (dos fundos da cozinha) nunca é fechada, pode amanhecer, pode anoitecer, pode fazer sol, pode chover, não importa, nunca é fechada.
 Talvez porque fica bem alto, longe do chão, os moradores dali tem esse costume a casa sempre é acima do chão uns três metros, assim vivem, assim são felizes.
Felizes também são por estarem dentro da natureza, envolvidos por ela, o rio que passa perto da comunidade é o suficiente para alimentar e sanar tantas outras necessidades vitais.
A mata, a floresta a bem dizer, é também um grande suporte em alimentação, curas, artesanatos e tantas outras utilidades, e eles, os ribeirinhos, sabem muito bem a importância daquele tapete verde.
Das janelas vê-se tudo, o começo e o fim.
O começo do dia, quando o sol se levanta e com seus raios vai penetrando no meio das árvores, por entre seus galhos e folhas até chegar nas brechas das paredes das casas dos moradores que a  essa altura muitos já estão de pés para receber em seus peitos e vidas os raios de uma nova oportunidade de viver e trabalhar. É a hora de fazer o primeiro alimento e depositar as esperanças naquele novo dia.
A janela da frente é aberta e uma brisa vinda do grande rio é soprada no rosto de quem enfrenta os primeiros raios de sol, o vento entra, e vai visitando cada cantinho da casa e seus moradores.
Na cozinha começa a movimentação, perto da janela que nunca é fechada, está o fogão, é dele que sai uma fumaça que anuncia que o novo amanhecer deve ser alimentado. Da mesma janela vê-se a curva que o rio faz, e ele também recebe em suas calmas águas os primeiros e claros brilhos dos raios do sol que anuncia que aquele vai ser mais um dia quente, cheio de vidas. É a vida que começa é a vida em movimento.
Os pássaros cantam, o galo canta, as revoadas de pássaros já movimentam-se num céu que começa a ficar azul e cada despertar é a certeza de que a vida também acorda e com ela o tempo começa a contar.
O dia passa, horas quieto, horas num afobar. Sempre tem um cantar, hora por cima hora por baixo, na beira do rio sempre um barulho de nadar, pular, balançar, são os "curumins" dando mais vida ao lugar, são vidas de dentro do rio que hora mergulha, que hora sai para se secar e um banho de sol a tomar.
Quando o sol já está a pino refletindo por inteiro todo o povoado sabe-se que é hora de almoçar. Da janela dos fundos da cozinha (a que nunca fecha) os curumins que brincam na beira do rio, percebem e veem que devem entrar. Eles que tanto brincaram, mas também ajudaram o pai, se encaminham em direção ao cheiro do peixe que cozinha no panelão, levado pela a fumaça e indo em direção a janela (a que nunca fecha).
Quando todos já sentados a mesa e comem o peixe com farinha e banana a alegria é constante, os curumins riem os adultos comem um pouco em silêncio e quando falam pouco se escuta é um sussurrar. É hora do alimentar.
O pai sempre senta em uma posição que seja qual for o dia qual for a hora terá a visão voltada para a janela que nunca fecha e através dela vê-se o grande rio que corre em direção a vida, dando o viver e o morrer. Quando já saciado do alimento, ele, o pai, fica quieto e com um olhar de concentração fica a admirar o rio que com todo seu esplendor mostrando-se forte e poderoso. É um rio comprido largo, que ele tanto admira, passa diante a janela que nunca fecha. O pai, concentrado fica lembrando que quando criança via o grande rio passando e seu pai vendo a mesma cena pela a janela que nunca fecha. São lembranças distantes e lembranças presentes, constantes, de vidas que vão e vem, renovam-se.
A concentração  é interrompida pelas gargalhadas dos curumins que já não estão mais a mesa e sim na varanda brincando, hora rindo hora gritando.
Ele, o pai, sabe que um dia um de seus filhos com certeza terá o lugar que hoje ele estar. O rio, o mesmo que um dia ele viu seu pai concentrado assistindo sua passagem e hoje é repetido com o seu olhar.
Depois do almoço os adultos costumam deitar em suas redes para um breve descanso, os curumins aquietam-se também, algumas dormem, algumas respeitam o silenciar.
O cantar do galo anuncia a tarde de um dia que deve continuar. Da janela que nunca fecha sai uma pequena fumaça vinda do fogão que já na ativa mantêm quente um mingau para um breve alimentar. Todos levantam, a vida deve seguir, os trabalhos se intensificam, o barulho do roçar do cortar, do bater, da alegria de gente pequena experimentando o que fazer.
A noite chega. Com ela vem  trazendo de volta os pássaros com seus granar. Os galhos das árvores são remexidos e a algazarras dos pássaros é compreendida. Todos querem um canto para deitar.
Todos entram em casa. Os curumins sabem que não é mais hora de brincar, o medo ronda a casa, ronda os espíritos. O pai tranca as portas e as janelas mais baixas, a dos fundo não. Por ela e entre as brechas das paredes percebe-se os raios da lua que chega para visitar, a janta é servida.
Todos em silêncio saboreiam um caldo de peixe bem cozido. Silêncio! Da janela vê-se nas águas do grande rio, o brilho da lua que ilumina todo o vilarejo e nas palhas dos telhados repousa a luz da longa noite que há de vir fazendo descansar todos que ali tiveram um grande e movimentado dia.
Quase todos já foram se deitar depois de saciarem o alimentar, o pai fica ainda sentado olhando para a janela que nunca fecha é por ela que consegue deslumbrar a grandiosidade do rio que corre ao longo de toda a margem de várias vidas que ali vivem.
O pai levanta-se e dirigi-se a janela que nunca fecha coloca-se bem próximo a ela e inspira profundo para sentir seu peito encher-se de vida e em seguida soltar bem devagarinho em direção do sair da janela que nunca fecha. Amanhã, tudo de novo começa. O sol nasce e tudo renova-se em cada movimento seja no ar, no rio grande ou em terra e da janela que nunca se fecha a vida passa a desfilar seja de alegria, tristeza, saudade, medo, aventura, escuro, brilhar, seja preto e branco até colorido novamente ficar.

Texto de Francisca Uchôa Souza.
 Foto arte de Francisca Uchôa Souza

                                              Foto de Gisele Braga Alfaia
                                              Lago  Janauacá