quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Ali nasceu Jesus

Ali nasceu Jesus

O barulho de todos os sons e as vozes das pessoas que acabavam se tornando em murmúrios, já não incomodavam João. Ele já se acostumara a viver naquele ambiente movimentado por tanta gente de diversos lugares e de todos os valores. Era um solitário, em meio à multidão. Seu cantinho era um beco sem saída, só não era esquecido porque todos do comércio local ali jogavam seus lixos, que geralmente eram caixas e plásticos. João aproveitava quase tudo, as caixas ele usava para forrar o chão e fazer pequenas paredes e o plástico ele cobria essa casa que ele tanto cuidava e trocava sempre. João já vivia ali há muitos natais e ele sabia que aquele seria mais um, só que agora não estava mais tão sozinho, agora ele tinha Fiel, seu pequeno e escudeiro amigo. Fiel era um pequeno cachorro que em uma madrugada meio chuvosa o encontrou perambulando perto do beco. João não o quis pegar para ele, mas Fiel adotou João como seu novo dono. E João não resistiu aquele olhar meio apagado. Fiel era cego de um olho, vai ver foi por isso que fora abandonado. João sabia o que era ser um peso na vida de alguém, ele mesmo se sentiu assim quando um dia descobriu e ouviu o que os filhos pensavam dele. João sabia que todos tinham seus problemas e ocupações e ele agora se tornara em mais um, ele se lembra das palavras de um dos filhos; -“Ele está velho e daqui a pouco ficará caduco e fora outros problemas que irão aparecer e sabemos muito bem que isso irá agravar muito mais, o certo é colocá-lo em uma casa de repouso, lá ele terá 'pessoas qualificadas' para dele cuidar”.
João lembra quando casou, não tinha qualificações para cuidar de bebes, tinha que trabalhar, mas quando chegava à noite em casa ele ajudava sua esposa a cuidar do bebe mesmo sem qualificações, os dois aprenderam, pois tinham amor e isso é uma qualificação que ensina todas as outras.
Depois que perdera sua esposa, João continuou a viver com que lhe sobrara, os filhos aos poucos foram indo embora e quando viu, estava só. A solidão era ruim, mas estava começando aprender a viver com ela. Os filhos por necessidades resolveram que tinham que vender a casa para sanarem dividas, que ele não as tinha feito. Não houve muito diálogos, João sumiu, saiu de cena, desapareceu, com que tinha no bolso, comprou uma passagem de ônibus e foi para outra cidade, mudou.
Triste, muito triste. Os primeiros dias foram cruéis, terríveis, quase ele desiste e voltava, mas seu amor estava machucado, dolorido mesmo, e ele sabia que eles, seus sete filhos, nenhum iriam entender e talvez fosse até pior, nunca veriam em seus olhos o clamor do amor que ele tanto queria e precisava.
Às vezes João sentia-se culpado e perguntava-se: Onde errei? Seria porque vivi mais para o trabalho do que para brincar com eles? Quem pagaria as contas?
Ou seria porque nas férias todos eles viajavam e João ficava para reforçar no escritório e com isso ganhava uns extras para pagar os pacotes de viagens tão desejados?
João não sabia direito, acabava deixando de lado os questionamentos, pois tinha que viver um dia de cada vez, vendendo papelões e plásticos para o seu sustento e o de Fiel.
O tempo passou e João ficou. Ficou só, a tristeza doía e ainda tinha os perigos das ruas, ele até tentou um abrigo, mas não deu certo e assim foi ficando. João começou a observar que além dele tinha tantos outros amargurados e com eles aprendeu a sobrevivência das ruas. Matar um leão por dia. Era a meta.
Muitos poderiam questionar sobre a vida de João, já que ele tinha família porque estar nas ruas?
Mas ele não mais se importava com a opinião dos outros e a família, essa ele sabia que o esquecera de vez.
Agora era natal de novo e ele precisava resolver sobre a ceia dele e de Fiel.O rapaz que comprava sua mercadoria desaparecera, depois João ficou sabendo que ele havia sido atropelado e levado para um hospital, agora ele tinha que procurar outro comprador. Mas não achou. E as coisas estavam esquisitas, pois seus papelões e plásticos diminuíram bastante. João ficou sabendo que era a “crise” e assim, seu natal talvez também estivesse em “crise.” O que fazer?
O dia estava findando e com ele ia à esperança de João, estava cansado, com fome e agora era aquela dor de cabeça e um frio vindo não sabia de onde, pois o tempo estava quente. Fiel também sentia fome, mas não reclamava, não soltava um au. As poucas caixas e plásticos que apareceram João ainda conseguiu ajuntar em um canto, conseguira água para ele e Fiel e assim depois de uns goles ele deitou e esperou a noite chegar. João tinha um privilégio nessa tormenta de vida, o beco que vivia ficava na frente de um prédio com janelas todas de vidros e todos os fins de dia ele podia ver o por do sol no reflexo do prédio. Mas nesse dia, não foi possível, João dormira cedo.
Os latidos eram altos e fortes para um cachorro de pequeno porte. Mas Fiel latia como nunca e não saía de perto de João. João acordou atordoado sem saber o que estava acontecendo, abriu os olhos e viu vultos, não conseguia distinguir de imediato. Aos pouco foi se erguendo do chão e vendo que o beco estava tomando por algumas pessoas. João se ergueu, mas caiu e logo ele sentiu uma mão lhe levantando novamente. João ficou confuso e nervoso, Fiel já parara de latir e estava sendo acariciado por uma criança. Afinal o que era aquilo? O que estava acontecendo? Quem eram aquelas pessoas? O que queriam? Eram tantas perguntas.
João não precisou perguntar mais, agora já com a vista estabilizada percebeu que eram pessoas vestidas de Papai Noel e que traziam em suas bolsas, presentes e alimentos. João foi abraçado e felicitado com um “Feliz Natal” e encaminhado para outra pessoa que lhe entregou sorrindo um prato de comida e uma bolsa contendo roupas, agasalhos e calçado. João até por uns instantes esqueceu Fiel, mas logo o recebeu com uma pequena coleira verde, já em seu pescoço, escrito Boas Festas.
Era um encanto? Estava sonhando? Não! Logo seu colega de rua veio ao seu encontro e disse: “São os Voluntários da Paz, eles fazem esse trabalho todos os anos e hoje ele chegaram até nós”.
João sorriu e se perguntou: (Seriam eles qualificados?)
O certo é que ali naquele momento, nasceu Jesus.
Jesus foi um como eles. Tinha amor, amor com qualificações de amor, a que ensina todas as outras.
Feliz Natal!

Texto e foto de Francisca Uchôa Souza.



 ,